Sobrevivências
- marcioheber5
- 3 de fev. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 4 de fev. de 2022
Em 1913 Freud realiza um passeio meio a uma florescente paisagem de verão na companhia de um amigo taciturno e um jovem poeta já famoso. O poeta, apesar de admirar a beleza da natureza que estava a sua volta, não conseguia se alegrar pois perturbava-o a ideia de que tudo aquilo iria desaparecer com o inverno bem como as mais belas criações humanas iriam desaparecer com o tempo. Ou seja, a seus olhos, tudo parecia desvalorizado devido a esta característica determinante da transitoriedade. Esse pequeno texto, escrito em 1915 e publicado no ano seguinte, partindo de uma bela e envolvente narrativa construída por Freud que relata fatos provavelmente nunca ocorridos[1], nos oferece alguns elementos que podem conversar com as proposições de um outro escritor francês chamado Georges Didi-Huberman, como tentaremos demonstrar.
Seguindo com o texto de Freud, temos que frente a transitoriedade (ou ao mergulho na caducidade de toda beleza e perfeição, como nos diz o autor) pode-se decorrer dois tipos distintos de “movimentos psíquicos”, sendo eles (i) uma certa falta de apetite diante do mundo, como a do jovem poeta ou (ii) uma rebelião contra esta realidade efêmera em que o mundo se desfaz no nada, algo como uma indignação com esta injúria sem sentido e, com isso, exigência de que elas possam continuar existindo sendo afastadas de qualquer influência destrutiva.
Apesar de Freud nos dizer não poder contestar a realidade de uma transitoriedade das coisas em geral e não conseguir fazer uma exceção à ela nos casos da beleza e da perfeição, ele irá contestar o poeta pessimista que associa tal transitoriedade com uma desvalorização. Para Freud, na verdade, “a limitação das possibilidades de fruição eleva sua preciosidade” e assim “há um aumento de valor” ao invés de uma desvalorização, sendo até mesmo incompreensível, por exemplo, como a beleza das obras de arte e da capacidade intelectual deveriam ser desvalorizadas devido sua efemeridade. Freud, seguindo sua argumentação com o poeta, ainda diz que apesar de ser possível que algum dia os quadros e estátuas que admiramos se desfaçam ou então que uma geração posterior não mais entendesse tais obras, ou ainda, que em uma seguinte época geológica se extinguissem todos os seres sobre a terra; ainda assim essa beleza teria o seu valor e significado frente a nossa própria sensibilidade para com ela, sendo por isso independente do tempo absoluto e desnecessária uma sobrevivência eterna.
No entanto, com todas as suas observações, Freud percebe que não causou qualquer impressão sobre o poeta e o amigo[2]. De fato, Freud acaba por concluir que seu fracasso se deu pela interferência de um momento afetivo forte pelos quais seus companheiros foram perturbados – a saber, uma provável revolta psíquica contra o luto advindo a partir da sensibilidade à ideia de que toda aquela beleza era transitória. Na passagem que se segue Freud realiza uma breve explicação sobre o luto e o movimento de amor entre o Eu e os objetos amados sendo que, ao final, “vemos apenas que a libido se prende aos seus objetos e também não quer desistir dos perdidos, mesmo quando já preparou um substituto” (p. 223). Ou seja, para Freud é incorreto pensar que os objetos perdidos, caducos e incapazes de resistir (por exemplo, à guerra) se tornem desvalorizados pois faz-se necessário superar o doloroso luto de tais perdas bem como o estado de permanente renúncia devido a fragilidade de tais objetos para que a libido torne-se livre novamente.
Recorrendo agora ao historiador da arte francês Georges Didi-Huberman, em seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes, temos a apresentação de uma bela metáfora sobre como podemos reagir frente a períodos de genocídio cultural e sobreviver diante da vala infernal (referência a Dante) da política bem como do movimento destrutivo da religião positiva do capitalismo. Partindo de uma cena vivida pelo cineasta e poeta Pier Pasolini, o autor vai nos dizer do fascismo e seus ferozes projetores de luz que tudo veem com seus holofotes mecânicos. Frente a essa luz forte do regime totalitário, fica difícil de enxergar as lucciolas (pequenas luzes e chamas de cada pecador) que representariam experiências efêmeras e particulares como a de Pasolini que, com seus amigos em uma noite de diversões, corre pela colina afora para se deparar com um coletivo de vaga-lumes brilhantes e, com eles, começa a se despir e dançar. Ou seja, a partir da questão central de como resistir a regimes totalitários Didi-Huberman irá nos oferecer uma saída que não se dá nem por uma indiferença completa e nem por uma confrontação em forma de imagens que dissipariam escuridão como o fazem os próprios holofotes mecânicos, mas por meio de uma imagem dialética, intermitente, fragmentária, evanescente e transitória.
Ao longo do texto o autor conversa com outros autores como Giorgio Agamben e Walter Benjamin para nos dizer que apesar de uma desvalorização da experiência nos tempos atuais, cabe a nós não apostarmos neste mercado. Aqui entra também um artigo do próprio Pasolini, na década de 70, caracterizado por um pessimismo que corresponderia a morte dos vaga-lumes. Com uma crítica a um movimento pendular que o autor designa à Agamben, o qual ora aposta em uma comunidade por vir, uma salvação transcendental e redenção final ora partilha do pessimismo de uma declínio total da experiência; o que Didi-Huberman nos oferece é uma saída pela diagonal, uma aposta nas comunidades que restam e na indestrutibilidade da experiência. Trata-se de uma recusa tanto do cenário apocalíptico quanto de um embate com forças equivalentes ao do próprio fascismo – o que, diga-se de passagem, leva ao risco de uma incorporação do mesmo em lutas que buscariam não mais a distribuição horizontal do poder ao povo (dḗmos) senão a tomada vertical do lugar combatido que idealmente deveria se manter vazio (o lugar do pai morto, como nos aponta Freud)[3].
Para o autor francês trata-se então de uma força diagonal montada por imagens caracterizadas “por sua intermitência, sua fragilidade, seu intervalo de aparições, de desaparecimentos, de reaparições e redesaparecimentos incessantes” (ibid. P.86), bem como a beleza da natureza descrita por Freud que “após sua destruição pelo inverno, ela voltará novamente no próximo ano, e esse retorno em relação à duração de nossa vida deveria ser eterno” (Freud, p. 222, 1916).
Ao final do livro de Didi-Huberman podemos perceber que as ideias do autor vão em concordância não só com a valorização da experiência efêmera e transitória, como apresentamos aqui, mas também com uma certa teoria da temporalidade que perpassa outros textos do Freud e desponta em certos fragmentos (ou lampejos) como nesta passagem única que o autor francês cita o psicanalista, com a qual nos permitimos concluir este texto:
Tal seria, para finalizar, o infinito recurso dos vaga-lumes: sua retirada, quando não se tratar de fechamento sobre si mesmo, mas “força diagonal”; sua comunidade clandestina de “parcelas de humanidade”, esses sinais enviados por intermitências, sua essencial liberdade de movimento; sua faculdade de fazer aparecer o desejo como indestrutível por excelência (e me vêm a`memória as últimas palavras escolhidas por Freud para sua Traudeutung: “esse futuro, presente para o sonhador, é modelado, pelo desejo indestrutível, à imagem do passado” (Didi-Huberman, p.154, 2014).
Referências
DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
FREUD, S. Transitoriedade. In: Arte, Literatura e os artistas. Tradução Ernani Chaves. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
[1] Tal passeio, realizado com Rainer Maria Rilke (jovem poeta) e Lou Andreas-Salomé (amigo taciturno), possui indícios históricos de não ter ocorrido, sendo este uma ficção narrativa de Freud. [2] Como nos diz em Considerações atuais sobre a guerra e a morte: “argumentos lógicos são impotentes em face de interesses afetivos, e por isso a disputa com argumentos, que na frase de Falstaff são abundantes como as amoras, é tão infrutífera no mundo dos interesses” (1915). [3] Um dia lhe perguntaram se, enquanto artista de esquerda, ele tinha nostalgia dos tempos brechtianos ou da literatura “engajada” à francesa, Pasolini respondeu nesses termos: “Absolutamente. Tenho apenas nostalgia das pessoas pobres e verdadeiras que lutavam para derrubar o patrão, mas sem querer com isso tomar o seu lugar” - Didi-Huberman, p.33, 2014.
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