'Comecem por não compreender'
- marcioheber5
- 3 de fev. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de fev. de 2022
Para situarmos a crítica que J. Lacan faz da compreensão, podemos, primeiro, dizer a quem ela principalmente se direciona e de qual compreensão falamos. Trata-se dos fundamentos da psicopatologia geral de Karl Jaspers, que traz consigo elementos interpretativos de cunho fenomenológico. Para este autor, em sua noção de compreensão, aborda-se a capacidade para acessar o estado interno de outras pessoas bem como para interpretar os motivos e significados subjetivos de suas ações. Jaspers realiza, ainda, uma distinção entre três tipos de compreensão: estática, genética e empática. De forma breve, na estática pretende-se compreender a experiência do cliente por meio de um exercício de imaginação no qual tentamos nos colocar vivendo a mesma experiência relatada pelo sujeito – evidentemente, imaginariamente. Na genética, a compreensão visa percorrer pelo encadeamento dos eventos psíquicos para, assim, restituir o sentido na cadeia desses eventos. Já sobre a compreensão empática, objetiva-se trilhar um caminho pelas experiências conscientes do sujeito a partir de representações, por exemplo, de seus sentimentos, desejos, angústias etc. – ou seja, a partir da pressuposição de que o cliente compreende algo do que se passa com ele, caberia ao médico/terapeuta acompanha-lo nessa compreensão para alcançar o lado subjetivo de seus estados mentais. Nesse sentido Correa (2011) nos diz que, de acordo com Jaspers, “devemos abordar a experiência psicopatológica do paciente somente com o que está de fato presente em sua consciência, pois qualquer coisa que não está sendo realmente experienciada conscientemente está fora de nossa consideração”[1]; e, recorrendo ao próprio autor, temos a proposição de que “[...] devemos voltar nossa atenção apenas para o que podemos entender como tendo real existência, e que podemos diferenciar e descrever”[2].
Por sua vez, Lacan perpassa pelas próprias raízes do sem sentido e da ambiguidade no uso das línguas, que não se deixam reduzir a qualquer tentativa de especularização na qual se fundamenta a compreensão fenomenológica. Se pensamos em um sujeito neurótico, há de considerarmos as dimensões da dúvida, da hesitação e da incerteza. Dessa maneira, Correa (2011) também nos diz que Lacan critica a abordagem da compreensão de Jaspers pois “se de um lado, não é falsa em si a restituição do sentido na cadeia dos fenômenos, de outro é falsa, sob o seu ponto de vista, conceber que o sentido tratado é aquele que se compreende”. Ou seja, trabalhamos com restituições de sentido, ressignificações, rememorações, narrativas e elaborações que se articulam, obviamente, com a cadeia fenomênica de cada um. No entanto, qualquer iniciante no campo da psicanálise sabe que não nos deixamos levar pela ilusão imaginária de que aquilo que se diz é o que se compreende de forma proposicional. Notamos, graças a Freud, que algo d’Isso fala no sujeito – ele não é amo e nem senhor do que diz, já que, quando fala e pensa estar utilizando a língua, na verdade, é a língua que o utiliza pois sempre há algo a mais além do que se diz naquele dizer. Desde seu Seminário 1 Lacan é pontual a esse respeito ao dizer, em uma passagem a meu ver elementar, que:
Nossos atos falhados são atos que são bem-sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Eles, elas, revelam uma verdade de detrás. No interior do que se chamam associações livres, imagens do sonho, sintomas, manifesta-se uma palavra que traz a verdade. Se a descoberta de Freud tem um sentido é este - a verdade pega o erro pelo cangote, na equivocação[3].
Esta é a descoberta de Freud, da qual devemos extrair suas consequências e fazê-la ecoar. Nesse sentido, somos advertidos por Lacan: “[...] cada vez que vocês compreendem, é aí que começa o perigo”[4]. E ainda: “o importante não é compreender, é atingir o verdadeiro”[5]. A verdade que fala (no sujeito[6]) situa-se no próprio descompasso entre realidade e discurso, naquilo que erra enquanto a apreensão das coisas. E se Lacan nos diz que os significantes só manifestam a presença da diferença como tal, não é por outro motivo senão para apagar a relação imaginária do signo à coisa. Dessa maneira, a verdade que habita lá onde terá estado o erro, se produz pela estrutura da fala, pelos efeitos de combinatórias significantes com as quais o analista joga (altera, inverte de alguma forma) para jogar de volta ao cliente (retornar sua própria mensagem) algo da verdade de seu desejo.
Portanto, Lacan realiza uma crítica à abordagem da compreensão em sua vertente exclusivamente imaginária que, ao propor nos colocarmos em uma posição de outro limitada, perpassa por uma pretensão que exclui as diferenças entre o sujeito, o Outro, a linguagem e a própria dimensão do engano. No entanto, vale notar que a psicanálise não deixa completamente de lado todos e quaisquer elementos da compreensão; bem como ela também não se mantém somente no campo do sem sentido ou dos jogos incessantes com as possíveis permutações significantes. O ponto fundamental aqui é a crítica aos efeitos do estabelecimento imaginário de uma relação biunívoca entre significante e significado.
Me parece que Lacan, ao final (mas um pouco também desde o início, como com essa crítica ao excesso de imaginário), queria principalmente nos mostrar e levar a cabo a equivalência de valores entre os registros com os quais trabalhamos. Sem qualquer prevalência imaginária, simbólica ou real, o que se coloca em jogo, enfim, é o saber fazer com o tempero que cada um coloca na mistura destes três ingredientes, via sinthoma.
[1] CORREA, Crístia R.G.L. (2011). A Compreensão na Psicopatologia de Karl Jaspers e na Psicanálise. [2] JASPERS, Karl. (2005). A abordagem fenomenológica em psicopatologia, p. 6. [3] LACAN, J. (1953-54). O Seminário I: Os escritos técnicos de Freud, p. 345. [4] LACAN, J. (1958-59). O Seminário VI: O desejo e sua interpretação, p.6. [5] LACAN, J. (1955-56). O Seminário III: As psicoses, p.59. [6] Entenda-se “no sujeito” tanto (i) a verdade conforme adjetivada em uma das modalidades da sintaxe quanto (ii) o sujeito no qual ela (a verdade) fala pelas diversas formações do inconsciente. Cf. A coisa freudiana, Escritos, p.410.
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